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A arte faz política

Tempo de leitura: 2 min

em 24/06/2025

A arte faz política

O escritor austríaco Hugo von Hofmannsthal dizia que nada aparece na política de um país sem ter antes aparecido na sua literatura. Não é que a literatura crie a realidade política; é que a linguagem poética, na medida em que seja uma síntese artística do real, torna comunicável experiências humanas que, antes, passavam despercebidas para o conjunto da sociedade. E a política só pode operar em cima dessas experiências que fazem parte do imaginário comum. Ou, de outro modo: é preciso primeiro que as pessoas sejam capazes de imaginar e verbalizar os problemas para só então se engajarem em solucioná-los.

Euclides da Cunha escreveu Os Sertões para nos dar a conhecer nossos irmãos sertanejos, aqueles fortes embrutecidos pela aridez do ambiente e a ambição dos senhores. Depois dele, pintaram também a vida nesses rincões a Rachel de Queiroz, o Graciliano Ramos, o José Lins do Rêgo e outros. De posse dessa galeria de imagens, fica-nos impossível ignorar os dramas e agruras daquele povo — dos que retiram e dos que ficam.

O abolicionismo, por exemplo. A causa ganhou vulto, sim, por causa da prosa inflamada de um José do Patrocínio, ou da temperada de um Joaquim Nabuco, mas principalmente pela poesia inescapável de um Castro Alves.

Daí que também por vias literárias é que se deva registrar e divulgar o fracasso sistemático da organização social brasileira no pós-abolição. Foi isso o que fez, por exemplo, Carolina Maria de Jesus. Preta, favelada e semi-analfabeta, ela revelou, com sua arte, as condições de miséria — física e moral — em que viviam os descendentes dos alforriados nas periferias da maior cidade do país. Aliás, Audálio Dantas, jornalista que descobriu a escritora e fez a edição dos seus diários, dando-lhes forma de livro (Quarto de Despejo), conta que a publicação da obra, um absoluto sucesso de vendas, suscitou debates entre políticos e técnicos, e que levou à formação de iniciativas como o Movimento Universitário de Desfavelamento (MUD). Como dizia Hofmannsthal: dos livros para a política.

No caso das favelas brasileiras, ainda há muito que se falar. Tivemos nas últimas décadas registros artísticos importantes, como os filmes Cidade de Deus e Tropa de Elite e os álbuns dos Racionais MC’s. Mas ainda carece, esse tema, de boa literatura. E literatura que não seja exatamente de protesto. Porque a linguagem poética é menos eficaz quando transmutada em deslavada retórica política. Não que a retórica política não tenha o seu lugar — citamos Patrocínio e Nabuco; é só uma questão de hierarquia.

Daí que a literatura social, que se objetive a falar da vida difícil daqueles que vivem nas periferias, deva ser não uma central de denúncias — como não raro se faz —, mas um mosaico sincero e realista, com cenas, sim, de violência, de abandono e de miséria, mas também de ternura, de heroísmo, de sabedoria e de esperança.

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Fábio Gonçalves é professor de linguagens e autor de livros como “Um Milagre em Paraisópolis” (2020), “Um Retrato do Doente e outros contos de Morte e Solidão” e “Uma negra comédia”

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