“Se minha mãe estivesse viva, eu não estaria sujo.” A frase dita por um menino, órfão de feminicídio no Maranhão, deveria ser suficiente para sacudir qualquer país. Em uma sentença curta, aquela criança expôs uma tragédia que atravessa estatísticas, mina qualquer discurso político e revela a ferida aberta da violência contra a mulher no Brasil. Ele não perdeu apenas a mãe. É a perda de proteção, de referência, de dignidade. É a marca deixada por um crime que destrói famílias, desestrutura comunidades inteiras e rouba futuros que ainda estavam sendo construídos. Quando uma mãe é assassinada, o impacto não termina na questão policial: ele ecoa por anos na vida dos filhos, que passam a carregar uma história que não escolheram.
Vivemos hoje uma verdadeira epidemia de feminicídios. Apenas em 2024, mais de mil mulheres foram mortas no Brasil por razões de gênero. Em São Paulo, segundo a Secretaria de Segurança Pública, mais de 55 mil mulheres sofreram agressões até outubro, e duzentas e sete perderam a vida — um aumento de 7% em relação ao ano anterior. Esses números não são apenas números isolados. Representam mulheres que tinham planos, vínculos, familiares. Representam mães que nunca mais verão os filhos crescer, filhas que não voltarão para casa, profissionais que não voltarão ao trabalho. Como foi o caso de Catarina Kasten, estuprada e assassinada em Florianópolis.
A escalada da violência revela um padrão que se repete com brutalidade. Nos últimos dias, assistimos casos que chocaram o país: a mulher alvejada cinco vezes na Zona Norte de São Paulo; a jovem atropelada e arrastada por quase um quilômetro, que perdeu as duas pernas; a mulher estrangulada pelo marido em Santo André; a agressão que terminou com um suspeito solto após audiência de custódia. Episódios assim, chocam, mas não são exceção. São sintomas de uma falha estrutural. Mostram que vivemos um colapso da proteção às mulheres, não por falta de leis, mas por falta de prevenção, integração institucional e políticas públicas que conversem com a realidade concreta dos territórios, especialmente nas regiões mais vulneráveis.
Como Coronel da Polícia Militar, como pai, principalmente de uma mulher e como cidadão, afirmo que a violência contra a mulher precisa ser tratada como prioridade absoluta de segurança pública. Feminicídio é crime anunciado. Ele começa muito antes da agressão fatal, nos sinais ignorados, nos boletins de ocorrência não investigados com a urgência necessária, nas medidas protetivas que não têm fiscalização adequada, nos agressores que se sentem seguros porque acreditam que “não vai dar nada para eles”. Para enfrentar esse ciclo, precisamos de inteligência, tecnologia, integração entre polícias, Judiciário, Ministério Público e assistência social. Precisamos de protocolos unificados, treinamentos continuados e respostas rápidas, especialmente nos primeiros sinais de ameaça.
Mas é preciso ir além. A violência de gênero nasce na cultura. Nas frases “ela provocou”, “é briga de casal”, “não se mete”. O que eu chamo de permissividade social é a raiz que alimenta a violência extrema. Enquanto não enfrentarmos essa cultura com educação, conscientização e políticas públicas sólidas, continuaremos a enxugar gelo.
Cabe a nós, gestores, especialistas e instituições, transformar essa comoção em ação concreta. O feminicídio não é apenas um crime. É uma emergência nacional que exige coragem, investimento e compromisso real. Enquanto não tratarmos essa epidemia com a seriedade que ela exige, outras crianças continuarão repetindo, com os olhos marejados, a frase que nenhum filho deveria pronunciar: “Se minha mãe estivesse viva…”

Por Coronel Ailton Cirilo, especialista em Segurança Pública
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