
A partir de 18 de outubro, o Inhotim inaugura na Galeria Lago a exposição Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho, primeira grande individual de Edgar Calel no Brasil. Reconhecido por entrelaçar arte contemporânea e cosmovisão kaqchikel-maia, o artista guatemalteco apresenta uma exposição imersiva com obras, em sua maioria comissionadas pelo museu, que evidenciam o caráter comunitário, espiritual e político de sua produção. A exposição de longa duração fica em cartaz até 2027.
Para receber a mostra, o espaço expositivo da Galeria Lago foi transformado: em lugar de paredes de arquitetura padrão, ergue-se agora a terra, elemento que constrói o percurso expositivo. O gesto conecta diretamente a paisagem vulcânica da Guatemala aos relevos e solos de Minas Gerais, estabelecendo pontes entre territórios, imaginários e contextos políticos. Uma conexão consonante ao programa artístico do museu, que tem, nos últimos anos, direcionado a sua programação a uma conexão com o território e a um diálogo com os temas de natureza.
“Calel nos convida a uma reflexão ampla sobre território, a partir da cosmovisão kaqchikel-maia. Para nós, enquanto instituição, é fundamental nos aproximarmos de perspectivas que tratam do aprendizado com a natureza e oferecem novos olhares sobre os desafios contemporâneos e sobre os territórios que habitamos. Esses temas atravessam a exposição, mas também reverberam em nossas práticas de gestão e de governança. Trata-se de um compromisso manifesto desta exposição e que orienta a programação do Inhotim como um todo”, afirma Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim.
No percurso de Ru Jub’ulik Achik – Aromas de um Sonho, o público é convidado a atravessar uma paisagem com obras feitas de folhas, pedras, madeira e terra, elementos naturais que narram histórias e testemunham cosmologias dos povos originários. Em In b’aqil [Sou um pedaço de osso] (2005), o artista descasca o reboco do prédio da galeria, em um movimento de investigação de outras ocupações daquele espaço arquitetônico e do território que ele ocupa. Obras em grande escala provocam sensorialmente a visita, como Q’eq Ulef Xan [Parede de terra fértil] (2025), bordado monumental de oito metros de largura realizado em colaboração com a família do artista, ou Kej- chi’ch’ [Veado de metal], (2025), uma escultura que reproduz, em tamanho real, a caminhonete vermelha da família e que envolve 18 esculturas de pessoas, também em tamanho real – trabalho inteiramente produzido pelo Ateliê do Inhotim, em colaboração com o artista.
A mostra culmina em um ambiente doméstico imersivo, evocando o ateliê-casa de Calel em San Juan Comalapa, ou Chi Xot (em Kaqchikel), na Guatemala, espaço de convívio e criação com sua família. Da janela desse cenário íntimo, avista-se o um dos trabalhos situados na área externa da galeria. É Tab’el [Lugar sagrado para não esquecer, 2025], obra que complementa a atmosfera de devoção e memória que permeia toda a exposição: um altar de pedra com velas e outros objetos religiosos.
“Nessa exposição apresento trabalhos que surgem da experiência e da convivência que tive com minha avó durante a infância. Muitas obras vêm de memórias: de sons, de cantos, de rezas nas montanhas, de oferendas, de imaginar mover uma pedra no ar, ou de perceber um avô ou uma avó na forma de pedra. Acredito que esta é uma das exposições mais emblemáticas que realizei nos últimos dez anos, porque as obras têm a dimensão necessária e o tempo de permanência adequado.”, reflete Edgar Calel.
Ao todo, doze trabalhos foram comissionados pelo Inhotim — Ru b’ix Qa Tzub’al [Canto visual para nosso espírito], (2025); Aqu’omanik Paruwi Juyu’ [Cura sobre as montanhas], (2025); Kotib’ib’al k”ux [Embalar seu espírito], (2025); In b’aqil [Sou um pedaço de osso], (2025); Oxi ijatz, oxi ixim, oxi ab’äj [Três sementes, três milhos, três pedras], (2025); Tzalen siwan [Profundo Abismo], (2025); Qatit Qa Mama’ Wawe Oj k’owi Chawech [Avó, avô, estamos aqui diante de ti], (2025); Kej- chi’ch’ [Veado de metal], (2025); Q’eq Ulef Xan [Parede de Terra Fértil], (2025); Nimajay kaqchikel [Casa grande Kaqchikel], (2025); Tab’el [Lugar sagrado para não esquecer], (2025).
A esses se somam a outras três obras — Ix b’alam Winaq [Mulher Terra, Jaguar Pessoa Completa], (2019–2025); Ki munib’al qatit qa mama’ [Oferendas para as avós e avôs], (2025); Xi ni chajij [Me protegeram com a essência do fogo / me cobriram de cinzas para me proteger], (2022)— que ampliam os diálogos propostos pelo projeto curatorial, que tem Beatriz Lemos e Lucas Menezes como cocuradores. Os títulos dos trabalhos, assim como o da exposição, estão na língua Kaqchikel, seguidos sempre por versões em português. Kaqchikel é uma língua maia, falada na Guatemala Central pelo povo Kaqchikel, da qual Edgar Calel e sua família fazem parte.
Pesquisa e deslocamentos
A concepção curatorial é fruto de pesquisa extensa que se intensificou com a primeira vinda do artista a Brumadinho em julho de 2024. Como parte desse processo, no começo deste ano, as equipes de Curadoria, Ateliê e Educação do Inhotim viajaram à Guatemala, onde conviveram com o cotidiano de Calel, mergulhando em seu território de origem. A experiência foi determinante para moldar a exposição, assegurando uma apresentação conectada às práticas do artista. Ao mesmo tempo, essa imersão proporcionou uma atuação antecipada e eficiente do trabalho das equipes do Inhotim, criando pontes estratégicas e cruciais para a produção da exposição e do programa de educação.
“A produção de Edgar Calel tem raízes profundas em sua cidade natal. A medida que avançávamos na pesquisa e discutíamos as questões-chave e os primeiros projetos para a exposição, ficou claro que era fundamental estar com o artista em seu território. A relação que o artista estabelece com sua ancestralidade maia não é referencial, ela está presente em todas as dimensões do cotidiano. Entendendo isso, saímos da Guatemala com o projeto pronto, tudo tinha o seu lugar, víamos tudo integrado. O resultado é a realização de uma mostra sem precedentes na carreira do artista.”, comenta Lucas Menezes, um dos curadores da exposição.
Duas casas, dois ateliês: San Juan Comalapa e Brumadinho
Durante esse processo, Calel autorizou pela primeira vez que parte de sua obra fosse produzida fora de seu ateliê familiar, na Guatemala. O encontro com a equipe do Ateliê Inhotim, liderado por Elton Damasceno, gerente de ateliê, resultou em um pacto de confiança, criando um eixo de trabalho entre San Juan de Comalapa, na Guatemala, e Brumadinho, no Brasil. O diálogo entre essas duas casas atravessa a exposição e reforça seu caráter comunitário e espiritual.
“Ao falar da minha família, reconheço também a importância da conexão entre ela e toda a equipe que se dedicou a produzir as ideias nos ateliês do Inhotim. Há uma conexão profunda entre um ponto e outro, entre um povo e outro. O que existe é algo tão bonito e tão importante: reconhecer que a arte contemporânea está sendo feita a partir dos povos. Esse enfoque é fundamental, pois também se trata da memória dos povos que estamos transportando por meio dessas obras”, reflete Calel.
Foi nesse contexto familiar em que o ateliê do Inhotim reviveu uma técnica de produção já conhecida pela equipe. Para a produção das esculturas da família de Calel que compõem Veado de metal (2025), pessoas colaboradoras do Inhotim participaram como modelos para a construção dos moldes que, posteriormente, foram preenchidos com argila para a composição do trabalho. Técnica semelhante foi utilizada há 20 anos, quando o museu comissionou os trabalhos Abre a Porta (2006) e Rodoviária de Brumadinho (2005), de John Ahearn & Rigoberto Torres, em que moradores de Brumadinho são retratados em painéis de grande dimensão na Galeria Praça.
“O Inhotim se orgulha muito de capacidade para produzir grandes e complexos projetos artísticos. Foi a partir dessa vocação que a Instituição conseguiu ser o que é e se tornar um projeto tão único. Nessa exposição, tivemos a honra de conectar o nosso ateliê ao ateliê familiar do artista, materializando e reforçando um diálogo existente na exposição: o que acontece entre os territórios de Brumadinho, Brasil, e da San Juan de Comalapa, Guatemala”, conclui Júlia Rebouças.
A exposição tem a Vale como mantenedora master e o patrocínio bronze do UBS por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
Sobre o artista
Edgar Calel (Chi Xot – San Juan Comalapa, Guatemala, 1987) é artista kaqchikel, primogênito de uma família de artistas e artesãos de sua cidade natal. Formado pela Escuela Nacional de Arte Rafael Rodríguez Padilla, desenvolve uma prática que transita entre desenho, pintura, escultura, fotografia, bordado, instalação, performance, vídeo e poesia, em profunda conexão com a ancestralidade kaqchikel e a espiritualidade maia, em diálogo com os ciclos rituais e comunitários que estruturam a vida cotidiana de sua família. Sua obra articula palavra, memória e símbolos, confrontando a colonialidade e o racismo sistêmico, propondo uma arte que é, ao mesmo tempo, celebração espiritual e crítica decolonial. Produzindo a partir de sua cidade natal, circula também em diferentes contextos internacionais, tendo chegado ao Brasil em 2011, onde estabeleceu uma relação singular com a cena artística. Em 2023, participou da 35ª Bienal de São Paulo (Coreografias do impossível). Entre suas individuais recentes, destacam-se Pa Ru Tun Ché (From a Tree Top) (Proyectos Ultravioleta, Cidade da Guatemala, 2021), B’alab’äj (Jaguar Stone) (SculptureCenter, Nova York, 2023) e Ni Musmut (It’s Breezing) (Bergen Kunsthall, Oslo, 2023). Também participou da 11ª Bienal de Berlim (2020), da 58ª Carnegie International (2022), da 14ª Bienal de Gwangju (2023), da 12ª Bienal de Liverpool (2023), além de Radical Playgrounds (Berliner Festspiele, 2024) e El espacio en medio (MAMM, Medellín, 2024). Suas obras integram coleções como Tate Modern (Londres), Museo Reina Sofía (Madri), Hammer Museum (Los Angeles), National Gallery of Canada (Ottawa), Rijkscollectie (Países Baixos), MADC e Fundación Teor/ética (San José, Costa Rica). Em 2023, foi incluído na Power 100: The Annual Ranking of the Most Influential People in Art da revista ArtReview, consolidando-se como uma das vozes mais significativas da arte contemporânea global.
Sobre os curadores
Beatriz Lemos (Rio de Janeiro, Brasil, 1981) trabalha com curadoria, pesquisa e escrita. Atualmente é Curadora Coordenadora do Inhotim.Entre dezembro de 2020 e janeiro de 2024 foi Curadora Chefe do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Tem formação em História da Arte pela UERJ e mestrado em História Social da Cultura pela PUC RJ. É diretora-fundadora da organização Lastro, que promove processos de criação e aprendizagem transdisciplinares, voltados para a arte no Sul Global. Sua atuação em curadoria se inicia em 2003 e tem, como destaque: integrou o programa Curador Visitante da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ 2015/2016); fez parte das comissões curatoriais do 20º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (2017) e da Bolsa Pampulha (2018/2019) Entre os anos de 2019/2021 integrou a equipe curatorial da 3ª Frestas – Trienal de Artes (Sorocaba, SP). Recebeu pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, EUA, o prêmio anual pelo conjunto da obra, Regents Lecturer 2023, oferecido aos profissionais internacionais de diferentes áreas de atuação.
Lucas Menezes (Barreiro, Brasil, 1986) é curador, pesquisador e educador. É curador assistente do Inhotim. É graduado em História pela UFMG, mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e doutor em História da Arte pela Université Paris 1 Panthéon Sorbonne.Foi tutor da edição 2023-2024 do programa de residências do Museu de Arte da Pampulha. Atuou nos setores educativos de diferentes instituições, entre elas o Instituto Inhotim, o CCBB BH e o Museu Casa Kubitschek. Em 2017, co-curou a exposição documental Images voyageuses : photographies brésiliennes en France na Fondation Calouste Gulbenkian em Paris. Foi também educador em projetos sociais, pesquisador no campo do patrimônio cultural e professor na educação básica.
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