A previsão de que a judicialização contra planos de saúde pode chegar a 1,2 milhão de ações por ano – e triplicar até 2035 – não deveria surpreender a ninguém. O número, embora chocante, é apenas a face estatística de uma dinâmica que se consolidou na última década: quando falham a regulação, a governança contratual e os canais de solução de disputas, o Judiciário se torna a instância ordinária — e não excepcional — de acesso aos serviços de saúde suplementar.
A explosão de litígios é, portanto, um sintoma, não uma causa. Entre 2021 e 2024, o volume de ações dobrou, segundo levantamentos amplamente divulgados pela imprensa. Esse crescimento não se explica por um súbito aumento de “consumidores litigantes”, mas por padrões reiterados de negativa de cobertura, reajustes questionáveis e práticas contratuais opacas. Em um cenário em que 35% das ações envolvem fornecimento de medicamentos, 30% dizem respeito a tratamentos médicos ou hospitalares e 20% discutem reajustes, não há dúvidas de que se está diante de litígios totalmente previsíveis, porque decorrentes de decisões que afetam diretamente a continuidade do tratamento do beneficiário.
A judicialização também expõe uma ruptura entre a promessa contratual e a realidade assistencial. Se uma operadora sistematicamente deixa de autorizar tratamentos já incorporados à prática médica, ou se reajustes são aplicados sem transparência suficiente, o conflito não é um acidente — é um subproduto do próprio modelo. Não por acaso, o altíssimo custo decorrente dessas disputas pressiona a sustentabilidade do setor e afeta a previsibilidade atuarial. Mas é ilusório tratar a judicialização como a raiz do problema: ela é, antes, o espaço onde se acumulam tensões não resolvidas em níveis anteriores.
Há, ainda, um risco institucional evidente. Transformar o Judiciário na arena primária de resolução desses conflitos significa atribuir a juízes a função tácita de gestores do sistema de saúde suplementar, decidindo individualmente sobre terapias complexas, cobertura de medicamentos inovadores e limites econômicos das operadoras. Esse desenho, além de sobrecarregado, produz decisões fragmentadas, cria assimetrias entre consumidores que litigam e os que não litigam e tensiona a própria ideia de equidade no acesso à saúde.
Nenhum sistema judiciário do mundo é capaz de absorver, de modo eficiente e homogêneo, mais de um milhão de disputas anuais sobre o mesmo setor. A pergunta, portanto, não é se haverá colapso — mas quando a realidade se tornará insustentável.
A saída exige reconhecer que o litígio não desaparecerá por decreto. O que se pode — e deve — fazer é reposicionar o Judiciário no lugar que lhe cabe: o último recurso, e não o primeiro. Isso implica fortalecer a capacidade regulatória da ANS, dar transparência a protocolos e critérios de cobertura, criar instâncias pré-judiciais efetivas e vinculantes e adotar métodos de resolução de disputas mais adequados à natureza técnica e repetitiva desses conflitos. Em outras palavras, redesenhar o próprio sistema de disputas da saúde suplementar, com decisões padronizadas, dados compartilhados e incentivos claros para a solução antecipada.
A judicialização em massa não é uma anomalia brasileira — é um alerta. Ela mostra, de forma contundente, que o sistema não está entregando aquilo que promete. Persistir nesse modelo é empurrar para o Judiciário uma crise que ele não tem condições nem vocação para resolver sozinho. Enfrentar o problema exige coragem regulatória, transparência setorial e uma mudança profunda na forma como concebemos a gestão dos conflitos em saúde.

Suzana Cremasco, Doutora em Direito pela UFMG, professora de Processo Civil do IBMEC, advogada especialista em solução de disputas
